Negra e abolicionista: os 194 anos de Maria Firmina dos Reis

Primeira romancista do Brasil e criadora da literatura afro-brasileira, Maria Firmina foi homenageada pelo Google.
Em 11/10/2019 10h54 , atualizado em 11/10/2019 12h26 Por Lorraine Vilela Campos

Maria Firmina é homenageada pelo Google pelo aniversário de 194 anos / Crédito da Foto: Google
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Nesta sexta-feira, 11 de outubro, Maria Firmina dos Reis, a primeira romancista brasileira, é a homenageada no Doodle do Google pelo seu 194º aniversário. Mulher, negra, escritora e independente financeiramente, ela desafiou a sociedade do século XIX ao se posicionar contra a escravatura em seus textos, com uma visão partindo do ponto de vista dos escravizados, inaugurando a chamada literatura afro-brasileira.

Maranhense, Maria Firmina foi a primeira escritora a humanizar os escravos que eram personagens de suas obras, algo inimaginável para a época. Obras como o livro Úrsula (1859) e o conto A Escrava (1887) marcaram a literatura brasileira com críticas à escravidão, textos que permanecem importantes para entender a forma como a sociedade brasileira menosprezou mulheres e negros ao longo dos séculos e a maneira como o machismo e o racismo se perpetuam até hoje. 

Veja também: obras literárias dos Vestibulares 2020

Quem foi Maria Firmina dos Reis?

Maria Firmina dos Reis nasceu em 1822, no Maranhão, mas só foi registrada em 1825 (conforme sua certidão de nascimento). Filha de Leonor Felippa dos Reis, a escritora não teve o nome do pai em seus registros por ser fruto de uma relação fora do casamento. 

A escritora ficou orfã aos 5 anos e, por isso, foi morar com sua tia materna, personagem fundamental na sua formação. A vivência com sua nova família lhe proporcionou o acesso ao estudo e à literatura, algo raro para a época, com influência intelectual do escritor e gramático Sotero dos Reis, seu primo por parte de mãe. 

Ainda jovem, Maria Firmina foi a primeira mulher aprovada em um concurso público no Maranhão, tornando-se professora infantil. Ao ser aprovada, ela rejeitou uma prática comum para a época, o desfile em palanque carregado por escravos, já que não concordava com o tratamento dado a eles, o que já mostrava seu posicionamento contra a escravidão. 

Literatura negra, abolicionista e feminista

Capa da primeira edição de Úrsula
Crédito: San' Luiz - Domínio Público

Foi como professora que Maria Firmina ganhou o respeito de vários intelectuais e conseguiu espaço para publicar seu livro "Úrsula", em 1859. De forma mais sutil, a escritora retratou a vida de uma escrava do seu ponto de vista sobre a situação do negro na sociedade do século XIX. A obra foi um marco e deu início ao que seria conhecido como literatura afro-brasileira. 

Maria Firmina seguiu na literatura com 'Gupeva', conto indianista escrito em 1861 e publicado três vezes em jornais do Maranhão. Posteriormente, a escritora escreveu 'Cantos à Beira Mar', uma reunião de poemas. 

Em 1887, Maria Firmina assina definitivamente seu discurso contra a escravidão. Aproveitando o momento abolicionista no Brasil, ela publica o conto 'A Escrava', obra que conta a saga de uma mulher de classe alta que tenta salvar uma escrava, mas não consegue. Sua escrita chega mais crítica, ácida e realista do que no livro Úrsula. 

Maria Firmina também foi fundamental como folclorista e na preservação da literatura oral, na tradição de contar histórias. Além disso, ela participou da composição do hino da abolição da escravatura. 

“Meteram-me a mim e a mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito e infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo que é necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos às praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão, fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como animais ferozes das nossas matas." - Trecho do livro Úrsula

Polêmicas

Maria Firmina mexeu na ferida de grande parte da sociedade, em especial do Maranhão, ao mostrar a força da mulher negra numa sociedade ainda escravista. Em uma época que a mulher e o negro não tinham voz, a escritora e professora lutou pela educação gratuita e irrestrita, além de abrir espaço para o movimento abolicionista. 

Anos antes da abolição da escravatura, Maria Firmina causou furor na população maranhense não pela sua escrita, mas sim pelo seu papel como educadora. Na então Maçaricó, ela criou uma escola mista para meninos e meninas - algo inaceitável para a sociedade local. O projeto durou apenas três anos por conta da revolta de vários moradores da região. 

Legado 

Maria Firmina morreu em 1917, deixando um legado para a literatura brasileira - em especial para mulheres negras. Mesmo sem rótulos, a escritora faz parte da história do feminismo no Brasil, principalmente da mulher nordestina. 

Mesmo com tamanha importância, a fisionomia de Maria Firmina é desconhecida, já que pouco restou de seus itens pessoais. A forma com a escritora tem sido retratada ao longo dos anos é feita a partir de relatos antigos e por aproximação de seu fenótipo. No Maranhão, uma estátua foi construída em sua homenagem, mas há críticas por alguns traços característico terem sido atenuados, descaracterizando sua origem negra. 

Maria Firmina teve sua história contada pelo biógrafo José Nascimento Morais Filho, em 1975, no livro 'Maria Firmina: fragmentos de uma vida'. Como o nome da obra sugere, detalhes da vida da escritora se perderam com o tempo, provavelmente pela sua audácia em enfrentar a sociedade escravista. 

Apesar do pouco material publicado, Maria Firmina segue viva na literatura e na história brasileira por reimpressões do livro "Úrsula". 

Presença nos Vestibulares

A reta final da preparação para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) 2019 e vários vestibulares importantes do país coincide com o aniversário de Maria Firmina dos Reis, que tornou-se presente nas provas de grandes vestibulares. Sua escrita crítica e com a clareza de quem viveu na época da escravidão, vindo de seu lugar de fala, são importantes para entender tal período histórico do Brasil. 

Veja também: Alunas lançam abaixo-assinado por mais mulheres nas obras literárias da Fuvest

Firmina abriu portas para que outras escritoras negras estivessem entre autores de obras que caem nos vestibulares, como Carolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo.

Carolina Maria de Jesus ficou conhecida por sua obra 'Quarto de despejo - diário de uma favelada', livro em que conta seu cotidiano como moradora da favela do Canindé, textos que são extraídos de seus diários e não poupam o leitor da realidade da mulher negra, favelada e mãe solo na imensidão da capital paulista. 

Conceição Evaristo é a principal representante da literatura afro-brasileira da atualidade, já que continua na ativa. De origem humilde, conciliou seus estudos com o trabalho como empregada doméstica. Ganhou fama internacional ao tratar as desigualdades sociais e de gênero por meio de seus poemas e romances. 

O número de mulheres autoras que estão presentes em obras literárias de vestibulares e concursos ainda é muito baixo se comparado aos homens. Essa falta de representatividade chamou a atenção de estudantes que fizeram um abaixo-assinado para que a Fuvest inclua mais autoras em seu vestibular

São mulheres como Maria Firmina dos ReisCarolina Maria de Jesus e Conceição Evaristo que mostram a importância que a literatura tem para dar voz aos diferentes segmentos da sociedade. A escrita emancipa mulheres, negros e demais minorias, enriquecendo a vivência de qualquer leitor.