Passar em medicina no Enem é o sonho de milhares de pessoas, por exemplo, no exame de 2023, foram 298.316 inscrições para ingressar na graduação pelo Sisu. Ao passo que havia apenas 5.733 vagas, ou seja, 52 candidatos para cada oportunidade.
Não é um sonho fácil de ser alcançado, mas é um caminho gratificante. Principalmente, quando é uma mãe que tem esse desejo, afinal, o peso do sonho delas é dobrado, assim como a recompensa pela conquista.
Uma das histórias que conta sobre a luta desse público é a trajetória de Ana Beatriz, mãe do menino Ravi que tem 3 anos e aluna de medicina na UFRJ aprovada pelo Enem. Ela largou uma graduação de engenharia no meio do caminho e foi atrás do seu sonho, a aprovação em medicina, enquanto ainda tinha que cuidar do filho que demanda cuidados especiais.
A decisão de cursar medicina
Quando Ana estava ainda no Ensino Médio, ela já tinha admiração pela área da saúde, principalmente pela Medicina. Mas ela já cursava um técnico em química e, por não se considerar uma das mais inteligentes da turma, resolveu deixar esse sonho de lado.
Sendo assim, decidiu por fazer vestibular para Engenharia Química e foi aprovada. Na época, ela até considerou a hipótese de fazer medicina depois que formasse em Engenharia.
Até que nasceu o Ravi, no meio do seu curso, logo depois veio a pandemia e ela teve que trancar a graduação. Ana teve complicações sérias no parto, quase morreu, assim como seu filho. Felizmente, eles sobreviveram, mas como consequência, Ravi teve uma paralisia cerebral.
Ana enfrentou muitas barreiras na hora de encontrar uma escola para seu filho, tentou em 16 instituições e não achou nenhuma que tinha estrutura e ela pudesse pagar. No meio de tantos problemas, Ana havia “enterrado” seu sonho de virar médica.
Então, quando ela estava próxima de destrancar o curso de engenharia, ela foi questionada sobre o que ela realmente queria fazer, Ana chorou e respondeu: “Medicina”. Ela disse:
“Aí, me veio na mente “Porque não?” Só que, assim, era loucura, aquilo que eu tava pensando, era loucura, era impossível. Como assim? Eu estava na metade da engenharia, teoricamente, era só destrancar o curso e terminar o que já estava fazendo. Só que a maternidade mudou tanta coisa para mim que não fazia mais sentido, aquilo (continuar na engenharia)”
Duas semanas depois, ela decidiu que ia fazer o vestibular de novo, dessa vez, para medicina e começou tudo do zero. Ela declarou:
“Foi uma decisão difícil, mas no meu coração não foi… Veio na minha mente: para eu ter um filho feliz, ele precisa de uma mãe feliz! Então, por mais que demore, eu vou atrás. Eu pensei nele também, se eu não fosse realizada, não conseguiria passar isso para ele.”
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Desafios por ser mãe e estudar para o Enem
Ana conta que ela lida com alguns desafios muito específicos, ela não planejava se tornar mãe e ainda teve complicações graves no parto. A estudante de medicina revela que seu maior desafio foi encontrar uma escola para deixar o filho e poder estudar.
Também comenta dos problemas financeiros, pois, tudo custa dinheiro, tanto em relação aos cuidados com Ravi, como na preparação para o Enem. Gastos como realizar cursos, comprar livros e transporte pesam no orçamento.
Outro desafio que Ana compartilha é a dificuldade de montar uma logística que encaixe todas as obrigações em um dia de 24 horas. Além de tudo, ela destaca a pressão mental, a dúvida se vai dar conta de tudo, o medo de não ser suficiente e, consequentemente, uma culpa.
A diferença que faz uma rede apoio para mães que estudam para o Enem
A mãe universitária diz que sem rede de apoio, não seria possível. Pois, ela precisa que alguém olhe seu filho mesmo que ela saia para comprar fraldas ou, simplesmente, ir no mercado.
Ana diz que a rede de apoio não é essencial apenas para os estudos, mas também para espairecer, ter alguém para desabafar, conversar, afinal, além de tudo, mães ainda são humanas. Ela revela que conta com o apoio da mãe, das irmãs e de outras pessoas, que a ajudam tanto no dia a dia com Ravi como para fazê-la companhia.
Sensação de ser aprovada
Ao descobrir a aprovação em medicina na UFRJ, Ana compartilha que sentiu muitas emoções, dentre elas, havia alegria, realização, gratidão, força e, também, preocupação. Ela refletiu que todo seu esforço havia valido a pena e se sentiu ser capaz de conquistar tudo que precisava para cuidar de seu filho.
Ana declarou:
“Caramba, depois que fui mãe, parece que nasceu uma força surreal, porque quando eu não era mãe eu nem imaginei a hipótese de realizar um sonho e depois, quando era mais difícil ainda de realizar, eu fui e consegui. Uma satisfação e uma força muito grande dentro de mim. Pensei que estava no caminho certo, que podia dar o melhor para meu filho e para mim.”
Ela também falou sobre a sensação de receio a voltar a interagir com o mundo, pois, desde o nascimento de se filho, o seu dia a dia era em casa com o Ravi.
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Desafios depois da aprovação
Mesmo após a aprovação em medicina pelo Enem, os desafios persistem. Ana compartilha que sair de casa é mais complexo depois que teve filho.
Ir para as aulas e deixar o filho cuidado por outra pessoa, ainda que seja bem cuidado, traz sensações de culpa. Ela declara:
“Quando nasce uma criança, nasce uma mãe com culpa”
Estabelecer prioridades, lidar com pressão psicológica, enquanto estuda, cuidar do filho e realizar os cuidados domésticos, não são tarefas simples. A responsabilidade de ter alguém que depende inteiramente de você, exige o desenvolvimento de habilidades que, antes, não eram necessárias, como planejar cada minuto do dia para otimizar a duração das atividades diárias.
Iniciativas para melhorar o acesso ao ensino superior para mães
Ao falar sobre mudanças necessárias para as mães acessarem o ensino superior, Ana elenca uma série de iniciativas, como:
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flexibilização de aulas que puderem ser realizadas à distância,
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auxílio-creche mais abrangente e com valor mais robusto,
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criação de espaços de acolhimento para crianças na faculdade,
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atendimento psicológico para mães e pais e
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espaço de convivência para quem está amamentando.
Ela também faz uma comparação entre as faculdades públicas e privadas e afirma que as instituições privadas têm mais políticas para cuidados com as mães que são alunas. Ana também compartilha que já teve que faltar para ir ao hospital, e que sente falta de espaço para negociar prazos de entrega de trabalhos.
Ela afirmou:
“não existem políticas estudantis para que eu consiga fazer a minha permanência na faculdade”
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Conselhos para mães que querem passar em medicina
Ana diz não querer romantizar o fato de ser mãe e estudante, também afirma que para quem quer conquistar a aprovação enquanto exerce a maternidade, é preciso ter em mente os recursos necessários para se alcançar o objetivo.
Ela diz que não se pode ter vergonha de pedir ajuda e que ter uma rede de apoio é essencial. Viver em comunidade ajuda muito.
É preciso ter a consciência que você não precisa lidar com tudo sozinha, dar conta dos estudos e formar um ser humano é muito a se fazer, lembrar o motivo de se enfrentar tudo isso, ajuda muito.
Ela declara que o principal é não se subestimar e reconhecer que cada batalha é única.
“Só você sabe qual é a sua realidade”.
Ana, por fim, declarou:
“Não desista nunca, a educação abre muitas portas e pode mudar a realidade de uma família. Não pense que as coisas não são para você.”