Análise de "Os Sermões", de Padre Antônio Vieira (1979)

Padre Antônio Vieira publicou três discursos temáticos para o dia de cinzas, no século XVII.

No calendário cristão, a Quarta-feira de Cinzas – dia seguinte à terça-feira de Carnaval – dá início à contagem dos quarenta dias da Quaresma, depois da qual se comemora o domingo de Páscoa, ou seja, a ressurreição de Jesus Cristo. O dia de cinzas relembra o dever da conversão e a certeza da morte, motivos pelos quais os cristãos passam esses quarenta dias em maior vigilância aos preceitos da fé e em recolhimento e luto, preparando-se para as comemorações da Páscoa de Cristo, o mais importante feriado litúrgico do cristianismo.

O padre Antônio Vieira publicou três discursos temáticos para o dia de cinzas: o “Sermão de Quarta-feira de Cinza - ano de 1672”, pregado por ele em Roma, na Igreja de S. Antônio dos Portugueses; o “Sermão de Quarta-feira de Cinza – ano de 1673”, também pregado por ele nessa mesma igreja, em 15 de fevereiro, dia da trasladação do mesmo santo; e o “Sermão de Quarta-feira de Cinza [sem data]”, preparado para predicação na Capela Real, em Lisboa, mas que não chegou a ser pregado por enfermidade do autor.

O tema da morte, presente nesses sermões, não adota a atmosfera cheia de terror que virá a ter na literatura gótica e ultrarromântica, antes, refere-se à adequação do discurso ao contexto dogmático da pregação e à mensagem costumeiramente atribuída às Quartas-feiras de Cinza, que é voltada aos deveres religiosos dos cristãos católicos. Nesses três sermões, Vieira adverte os fiéis sobre a questão da fugacidade da vida e da irreversibilidade da morte, mas utiliza a ideia canônica de que viver em Cristo é estar morto para o mundo, de modo a criar um jogo retórico de singular engenhosidade, o qual surpreende o leitor ou o ouvinte a cada sentença.

Sobre o autor:

Padre Antônio Vieira viveu a quase totalidade do século XVII e foi uma testemunha crítica da consolidação do Brasil Colônia. Nasceu a 6 de fevereiro de 1608, em uma casa da Rua dos Cônegos, perto da Sé de Lisboa, em Portugal. Veio para o Brasil com apenas seis anos de idade e recebeu formação escolar no Colégio dos Jesuítas da Bahia (Colégio do Salvador da Bahia).

Em 1640, ganhou notoriedade pelo “Sermão do bom sucesso das armas de Portugal contra as de Holanda”, pregado na Igreja de Nossa Senhora da Ajuda, ao qual foi atribuído o mérito da expulsão dos holandeses da cidade de Salvador. Nesse mesmo ano, com a Restauração portuguesa, foi enviado a Lisboa devido a suas qualidades como orador e conhecedor da situação da colônia.  Em terras portuguesas, conquistou grande prestígio junto à Corte de D. João IV, que admirava bastante a, assim chamada por ele, “lábia” de Vieira. Vieira tornou-se conselheiro e embaixador de D. João IV. 

O período entre 1641 e 1652 marcou seus anos de maior atividade política e de oratória. Suas missões diplomáticas, entretanto, foram todas malsucedidas. Desse modo, Vieira acabou por perder o prestígio na Corte. Em 1651, decidiu voltar para o Brasil e, por dez anos, atuou como missionário no Maranhão, catequizando os índios e administrando missões jesuíticas.

Com a morte de D. João IV, em 1656, e os conflitos que puseram fim à regência da rainha-mãe D. Luísa de Gusmão, em 1662, Vieira perdeu definitivamente a sua influência pública e acabou por ser expulso do Brasil pelos colonos, em 1661, juntamente com os demais jesuítas do Maranhão e do Pará.

Aspectos gerais de sua literatura:

A literatura de padre Antônio Vieira não compreende obras de ficção.  Suas bem-escolhidas palavras voltavam-se para uma atuação político-religiosa concreta no cenário social da época; entretanto, a qualidade estética de seus textos, muitos deles publicados ainda em vida, transformaram a personalidade histórica em um autor literário.  Por isso, ao analisar a obra de Vieira, é necessário ter em conta que a voz que fala não é um narrador ficcional tradicional, mas a projeção coerentemente imaginada e construída de um orador pio e exemplar que segue as regras da retórica clássica greco-latina e os preceitos teológicos do catolicismo.

A crise dos valores renascentistas que marcou o século XVII encontrou no estilo barroco uma estrutura argumentativa capaz de alinhar o raciocínio lógico aos desígnios transcendentais da fé.  O padre Antônio Vieira foi bastante sensível a essa tensão entre razão e crença, expressando com especial sagacidade e destreza o gosto – que era próprio da sociedade ocidental daquele período – pelo contraditório, pelo ornamento e pela expressividade. Desse modo, deu voz aos valores da Igreja e do Estado, alinhando-os sempre a seus próprios interesses e de forma criativa, agradável e interessante ao público.

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Uma das estratégias utilizadas por ele era a técnica da “disseminação e recolha”. Na disseminação, levantavam-se ideias e questionamentos, em geral por meio de perguntas que deixariam o público sem resposta; na recolha, retomavam-se essas questões com respostas improváveis, mas assertivas e bem-fundamentadas em exemplos.

A oratória barroca do padre Antônio Vieira era afiliada a uma tendência estilística popular na época, denominada conceptismo. As técnicas conceptistas conduziam ao jogo de ideias, à organização da frase segundo a lógica e à arte de dizer uma coisa fazendo menção à outra.

Aspectos gerais da obra analisada:

Os “Sermões de Cinza” são também conhecidos como “Sermões do pó”, pois todos os três possuem a mesma epígrafe, retirada da passagem em que Deus sentencia a mortalidade de Adão, explorando a imagem do retorno ao pó do qual foi criado (Gênesis 3:19). Assim, os textos formam um tríptico discursivo, em que há sequencialidade e complementaridade temática e argumentativa.

Nos dois primeiros, essa relação é mais direta, pois ambos foram pregados para o público romano, em anos consecutivos, e publicados logo no Tomo 1 dos Sermões, sendo que o primeiro é antecedido somente pelo “Sermão da Sexagésima”, e o segundo encerra o volume.  O terceiro “Sermão de Cinza”, por sua vez, possui diferenças maiores: foi publicado apenas no Tomo 6 e com a menção de que era dirigido a Corte portuguesa; sua data, porém, pode ser estimada entre os anos de 1676 e 1680, pois teria sido escrito para uma das Quartas-feiras de Cinza que Vieira passou em Portugal, depois de sua estada em Roma e antes de retornar para o Brasil. Nesse sentido, é possível que a menção à doença como motivo para sua não pregação pode ter sido uma maneira polida de confrontar a má receptividade que Vieira encontrou na Corte de D. Pedro.

De todo modo, os três sermões tematizam a morte por meio da diferenciação entre o pó que somos (enquanto vivos) e o pó que haveremos de ser (quando mortos), dando diferentes tratamentos para a questão.

1º Sermão de Cinza

Exórdio [I]:  a partir do tema da origem poenta do homem, retirado do livro bíblico de Gênesis 3:19 (“[lembra-te de] que és pó e em pó te hás de tornar”), apresenta-se uma tese, de ponderação interrogativa, que transforma em um enigma a afirmação bíblica de que o homem é pó (no presente), e não apenas foi (no passado) e será (no futuro). 

Narração  [II  e  III]:  com  o  argumento  geral  de  que  “tudo o que vive nesta vida, não é o que é, é o que foi, é o que há-se ser”, no episódio bíblico da vara de Moisés  transformada  em  serpente  e  no  da  autodenominação  de  Deus  a  Moisés  no  deserto,  busca-se a  justificativa  para  a  seguinte  afirmação:  diferente de  Deus,  que  é  sempre  idêntico  ao  seu  próprio  ser, a  existência  do  homem  é  circular,  vai  do  pó  ao  pó, de modo que a vida é a trajetória circular desse processo. Assim, Vieira valida a ideia de que a vida não é senão um caminho para a morte.  Argumenta-se que a própria natureza humana, sempre inquieta, acaba por nos colocar diante da certeza da transitoriedade de vida, de que voltaremos a ser o pó que éramos e que, por isso, nunca deixamos de ser.

Divisão [IV e V]: explicado o sentido presente do pó que éramos e que voltaremos a ser, divide-se a argumentação em duas assertivas: o pó da vida é pó sobrado (em movimento); e o pó da morte é pó caído (em repouso). Desse modo, Vieira diferencia vida e morte da perspectiva poenta do homem e explícita como se dará a sequência lógica do sermão, transformando as duas assertivas em dois aspectos a serem problematizados: “um memento ao pó levantado, outro memento ao pó caído”.
 
Confirmação [V e VI]: concentra-se aqui o aspecto persuasivo do sermão.  1.  Faz-se o memento ao pó levantado destacando a finitude do sopro da vida:  “lembre-se o pó levantado que houvesse ser pó caído”. Os dois diferentes estados do pó são transformados, assim, em uma alegoria sobre a efemeridade das conquistas mundanas, para exortação dos fiéis contra a vaidade e os desejos. 2. Faz-se o memento ao pó caído salientando a promessa da ressurreição:  “lembre-se o pó caído que houvesse ser levantado”, ou seja, discute-se o fato de que as almas irão ao Inferno ou ao Paraíso de acordo com o modo como levaram a vida. Agora, o ouvinte virtual do sermão é uma figura retoricamente construída, pois Vieira não se dirige realmente aos mortos, senão aos mesmos vivos que compõem a audiência da Igreja de S. Antônio dos Portugueses em Roma.  Com essa exortação despropositada e simbólica, busca chamar a atenção dos fiéis para a ornamentação expressiva do discurso, muito logicamente e exemplarmente construído. Esse aviso aos mortos, contraposto ao apelo aos vivos, acaba por funcionar como a comutação, que não chega a ser efetivamente desenvolvida nesse sermão.

Peroração [VII]: amarra-se o discurso com o seguinte conselho: tratemos desta vida como mortais, e da outra como imortais.  

2º Sermão de Cinza

Exórdio [I]: é retomado o tema do 1º “Sermão de Cinza” sobre a origem poenta do homem. Tendo já advertido sobre o perigo da diferença entre o pó que somos e o pó que havemos de ser, o orador propõe agora uma solução: transformar o pó da vida em um corretivo para o pó da morte, anulando veneno com veneno. Desse modo, é disposta a tese de que é preciso morrer antes de morrer para vencer a morte e chegar ao Paraíso.

Narração [II]:  com base no argumento geral de que “já que hei-me ser pó por força quero ser pó por vontade”, busca-se casos exemplares que teriam assim procedido anteriormente. São, por isso, mencionadas as experiências de Sêneca, S.  João, S. Ambrósio e Davi. Essas narrativas ajudam a validar a ideia de que estar vivo (ou seja, em pecado) quando a morte chegar é o pior dos perigos da existência humana (morrer vivo) e, por isso, é procedimento coerente e necessário morrer por escolha (ou seja, abandonar o pecado e a ambição) enquanto o pó ainda está levantado (morrer morto).

Divisão e Confirmação [III, IV e V]: o discurso é dividido em três pontos sobre a morte que é preciso ter em conta para estar preparado para ela: “Se a morte é terrível por ser uma, com esta prevenção serão duas; se é terrível por ser incerta, com esta prevenção será certa; se é terrível por ser momentânea, com esta prevenção será tempo, e dará tempo. ”  

Confutarão [VI e VII]: o contra-argumento é articulado por meio de um paradoxo: a alegação de que a morte rumo ao Paraíso não seria, ao fim, uma morte, e sim a passagem para uma vida sem término diminui o valor das perdas que se poderia ter ao decidir morrer enquanto pó levantado no mundo temporal e finito. Ainda assim, é reconhecida a dificuldade de abrir mão de “todos os gostos e interesses da vida”.

Peroração [VII]: o argumento definitivo gira em torno da ideia de que morrer antes da morte seria alcançar a liberdade e contornar as mazelas da vida.  Desse modo, escolher por deixar a vida antes que ela termine seria não uma autopenitencia, mas uma forma de vida melhor e mais sossegada.

3º Sermão de Cinza

Exórdio [I]: novamente tomando Gênesis 3:19 como ponto de partida, Vieira faz menção aos “Sermões de Cinza” anteriores, mas tem em conta tanto a distância temporal que separa este dos outros dois como a diferença de público, que teria sido formado pela Corte portuguesa, se o tivesse pregado na Capela Real de Lisboa. A tese agora enunciada põe em xeque os sentimentos de amor à vida e de temor à morte, por meio da afirmação de que esses afetos deveriam estar trocados.

Narração [II e III]: a ilustração da tese de que se deve temer a vida e amar a morte, de que a morte é liberdade, enquanto a vida é cativeiro, dá-se pela sabedoria de Salomão, segundo o qual é muito melhor a sorte dos mortos que a dos vivos. Além disso, coloca-se em cena novamente o episódio da ressurreição de Lázaro, salientando agora que Cristo esteve mais alegre ao saber da morte dele do que ao ressuscitá-lo, uma vez que, vivo, estaria mais uma vez sujeito aos trabalhos e às tentações deste mundo. Menciona-se, ainda nesse sentido, a cultura dos passeamos, povos bárbaros que pranteavam os nascimentos e celebravam as mortes, entre outros exemplos gentios e bíblicos.

Confutarão [IV e V]: em atenção à polêmica da proposta, opta-se por anteceder o contra-argumento aos raciocínios de divisão e confirmação. Procura-se mostrar, com exemplos cotidianos, históricos e bíblicos, que a vida é temorosa mesmo para os que vivem confortavelmente, pois há sempre o perigo da doença, da pobreza e da morte, uma vez que todas as situações da vida são passageiras. O argumento-chave reverte engenhosamente o senso-comum sobre o pecado original: “Cuidam alguns que não matar Deus a Adão e Eva foi misericórdia, e não foi senão justiça; porque perdidas as felicidades do Paraíso, assim como o morrer seria remédio, assim o não morrer foi o castigo”.

Divisão e confirmação [V, VI e VII]: divide-se, enfim, o discurso entre os bens da natureza, os da fortuna e os da graça, buscando destacar todos os tipos de bem-aventuranças que se pode ter e perder estando vivo, mas que não afetam os mortos, assim confirmando que a vida é mais temível que a morte. 1. Os bens da natureza se referem à relação do homem com seu corpo, da qual o orador focaliza a questão da saúde e o quão terrível é perdê-la.  2. Os bens da fortuna dizem respeito ao aspecto provisório da felicidade, que pode ser revertida em miséria a qualquer momento (roda da fortuna). 3. Os bens da graça remetem-se às tentações da carne que podem fazer cair o virtuoso a qualquer momento; por isso, enquanto se é vivo, é preciso estar constantemente vigilante. 

Peroração [VIII e IX]: dividido em duas partes, o encerramento do sermão é amargo, diferentemente dos anteriores. Isso condiz com a situação de Vieira à época, mal recebido pela Corte de D. Pedro II.  Entretanto, fica explícito que a morte que se deve amar não é necessariamente a morte física, mas sim o morrer antes da morte, aconselhado no 2º “Sermão de Cinza”. Desse modo, Vieira conclui seu tríptico seminário de Cinza destacando a finitude do pó levantado e a eternidade do pó caído, do qual se deve cuidar ainda em vida.