Análise de "O Espelho", de Machado de Assis

O conto apresenta Jacobina, um homem que reúne com quatro amigos para discutir questões metafísicas e existenciais.
Por Sistema Poliedro

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O conto “O espelho”, um dos textos mais famosos de Machado de Assis, foi originalmente publicado no jornal Gazeta de Notícias em 8 de setembro de 1882. No fim do mesmo ano, também foi lançado em livro, inserido na coletânea Papéis Avulsos, que reunia doze narrativas curtas do autor. “O espelho”, subintitulado ironicamente de “Esboço de uma nova teoria da alma humana”, é um pretenso conto filosófico que discute o processo de formação da identidade de cada indivíduo e a relação entre subjetividade e vida social, demonstrando como o olhar dos outros interfere na imagem que fazemos de nós mesmos. 

O enredo gira em torno de Jacobina, um homem rico de meia idade que narra a outros quatro senhores um episódio marcante de sua juventude, o qual definiu a sua personalidade adulta, na altura em que iniciou a carreira militar. O protagonista utiliza essa experiência para exemplificar uma tese extravagante. Segundo Jacobina, as pessoas não teriam apenas uma alma, e sim duas: “uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro”. Por meio da voz “astuta e cáustica” de Jacobina, Machado de Assis adota um tom irônico e incisivo com seus leitores, sugerindo um olhar perplexo e desiludido sobre o que diz respeito à natureza humana, uma vez que, se existirem mesmo duas almas – uma interior e outra exterior –, ninguém seria autêntico. Cada pessoa acabaria por ser o resultado sempre provisório do embate entre essas duas almas. 

Como boa narrativa machadiana, o conto critica com mordacidade e desengano o fato de que a alma exterior acaba por ser mais nítida e sedutora e, por isso, teria mais chances de prevalecer sobre a alma interior, fazendo com que a “essência” de cada um acabasse por desaparecer a certa altura da vida, ficando-nos apenas a “aparência”. 

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Tópicos deste artigo

Aspectos gerais sobre a obra

O conto-teoria “O espelho” propõe uma maneira de olhar para o mistério da existência humana e sugere uma interpretação dos processos de formação da identidade por meio da hipótese das duas almas. 

Como a maioria dos contos de Machado de Assis, “O espelho” não pode ser lido com ingenuidade; por detrás da atmosfera solene, é possível identificar a visada irônica, muito própria do estilo machadiano, que retrata com zombaria a suposta seriedade das discussões filosóficas.

A narrativa tem duas camadas diegéticas (ficcionais), por isso é possível identificar um conto dentro do próprio conto, subdividindo em duas instâncias os elementos da narrativa. Por esse motivo, enredo, narrador, tempo, espaço e personagens acabam sendo também construídos em duas camadas: exterior e interior.

Enredo - Enredo do conto: o protagonista Jacobina está na sua meia-idade participando de uma tertúlia filosófica.  Enredo do conto dentro do conto: o protagonista Jacobina tem vinte e cinco anos e passa uma temporada no sítio afastado de uma tia, pouco depois de ser nomeado alferes da Guarda Nacional.

Narrador - Narrador do conto: o narrador que descreve a primeira camada diegética é um narrador onisciente, que pode ser confundido com a voz do próprio autor.  Narrador do conto dentro do conto: o narrador que descreve a segunda camada diegética é o narrador protagonista (ou personagem relutante) Jacobina, que narra um episódio da sua juventude e o observa, portanto, distanciado pelo tempo. Essa narração surge nos diálogos, identificados graficamente pelo travessão.

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Tempo - Tempo do conto: identificado como o presente, é o tempo da tertúlia filosófica; quando Jacobina está na sua meia-idade. Tempo do conto dentro do conto: o tempo do episódio relatado é o passado, quando Jacobina tinha vinte e cinco anos e ficara hospedado no sítio da tia.

Espaço - Espaço do conto: o cenário é a sala de uma casa no morro de Santa Teresa, localizado na região central da cidade do Rio de Janeiro e muito procurado por famílias abastadas que queriam fugir do calor do verão. Cria-se um ar sóbrio para o ambiente, próprio para essas discussões “de alta transcendência”.  Espaço do conto dentro do conto: o cenário é a casa do sítio da tia Marcolina, um “sítio escuro e solitário” que ficava “a muitas léguas” da vila onde Jacobina vivia. Nessa casa, ganham relevo a sala, local em que estava o espelho – o qual dá título ao conto –, e o quarto em que Jacobina foi instalado, onde esse mesmo espelho foi colocado. A ambiência é construída segundo uma atmosfera sobrenatural, fazendo com que a obra beire o gênero fantástico.

As duas almas

O teor desencantado da narrativa é dado pelo fato de a alma exterior ter dominado a interior do jovem Jacobina. Em “O espelho”, a teoria das duas almas acaba por alegorizar, de forma irônica e amarga, o império das aparências, em uma sociedade na qual a máscara do cargo vale mais do que a pessoa que o ocupa. Machado de Assis crítica de forma satírica o fato de todos cumprirem seus papéis sociais por meio de máscaras e fantasias. As regras da atuação social definem o modo de agir em público e fazem com que os indivíduos percam a capacidade de se expressar de forma genuína. 

O espelho

O objeto tem função de personagem, uma vez que são várias as passagens em que o espelho é caracterizado e interage com o protagonista. Na psicologia lacaniana, é denominado estágio do espelho o momento em que a criança reconhece a sua própria imagem e passa a perceber a sua singularidade com relação às pessoas que compõem o seu círculo social. O narrador do conto dentro do conto caracteriza cuidadosamente o espelho que mediou um momento de virada em sua vida, personificando-o. O reflexo no espelho é utilizado para demonstrar como as pessoas são constituídas na relação social. A opinião dos outros interferiu irreversivelmente na imagem que o jovem Jacobina fazia de si mesmo; assim, ele não foi capaz de se reinventar sozinho. Assim, Jacobina representa um movimento essencialmente comum a todos nós.

A inconstância da personalidade humana, explicada por meio da fratura do conceito de alma, não constitui, contudo, uma verdade absoluta. O irônico narrador machadiano propositalmente se esconde por detrás dos personagens e não elabora um juízo de valor, como faz em muitos outros contos. Reina, portanto, o discurso autoritário do Jacobina mais velho, que faz com que todos fiquem sem palavras. Porém, por detrás da cena, o narrador do conto poderá estar rindo dos leitores que, como os quatro cavalheiros, mergulharam a sério na perspectiva casmurra daquela personagem taciturna. Como é próprio das obras de Machado de Assis, “O espelho” incita o olhar desconfiado e crítico, lembrando-nos de que o nosso aprendizado e a nossa perspectiva do mundo também têm um movimento duplo, de apreender desconfiando e de desconfiar apreendendo.