“Eu sou um escritor difícil
Que a muita gente enquizila,
Porém essa culpa é fácil
De se acabar duma vez:
É só tirar a cortina
Que entra luz nesta escurez.
Cortina de brim caipora,
Com teia caranguejeira
E enfeite ruim de caipira,
Fale fala brasileira
Que você enxerga bonito
Tanta luz nesta capoeira
Tal-e-qual numa gupiara.(...)”
O fragmento de poema que você leu agora é de autoria de Mário de Andrade, um dos criadores do Modernismo Brasileiro. Em Lundu do escritor difícil, Mário defende, com bom humor e ironia, a importância da cultura popular na formação de uma identidade genuinamente brasileira, uma das mais importantes pautas do Modernismo em sua primeira fase.
Mário nasceu em São Paulo, capital, no dia 09 de outubro de 1893. Filho de família rica e aristocrática, estudou piano, tendo se formado no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde posteriormente seria professor. Além da paixão pela música, Mário também escrevia poemas e, em virtude de tremores nas mãos, passou a dedicar-se cada vez mais à Literatura: o primeiro livro, intitulado Há uma gota de sangue em cada poema, foi publicado em 1917, sob o pseudônimo de Mário Sobral.
Mário de Andrade e seus alunos do Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, 1931
As expedições de Mário pelo Brasil foram responsáveis pela formação de sua identidade como artista. Grande observador, documentava a cultura e a história dos lugares que visitava, estudando a cultura e os hábitos do povo brasileiro. Da pesquisa etnográfica, surgiram as principais diretrizes do movimento modernista que eclodiria em 1922 com a realização da Semana de Arte Moderna. O célebre evento, realizado entre os dias 11 e 18 de fevereiro de 1922 no Teatro Municipal de São Paulo, marcaria indelevelmente a história da Literatura Brasileira, tendo Mário contado com importantes nomes como Oswald de Andrade, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Menotti del Picchia, o famoso Grupo dos Cinco.
Nesse mesmo ano, Mário publicou uma de suas mais importantes obras, o livro de poemas Paulicea Desvairada, marcando o início do movimento modernista na Literatura. Em seu primeiro romance, Amar, verbo intransitivo (1927), faz uma crítica à tradicional estrutura familiar paulistana, narrando o envolvimento de um jovem de família abastada com uma governanta alemã mais velha, contratada para iniciá-lo na vida sexual e amorosa. Prática comum entre as famílias de posição social elevada da sociedade paulistana, a denúncia irreverente de Mário chocou o público, especialmente aquele que se viu retratado no enredo de Amar, verbo intransitivo.
Macunaíma, Paulicea Desvairada, Amar, verbo intransitivo, Os filhos de Candinha e O losango cáqui estão entre a extensa obra de Mário de Andrade
Em 1928, a convite do amigo Oswald de Andrade, Mário passou a trabalhar na Revista de Antropofagia. Nesse mesmo ano, publicou o romance Macunaíma, obra sem precedentes na Literatura Brasileira. Na saga do herói sem nenhum caráter, Mário de Andrade buscou valorizar a cultura nacional a partir da abordagem de temas folclóricos e mitológicos próprios do Brasil, criando uma linguagem literária inovadora, aproximando a língua escrita à língua oral. Macunaíma foi o livro que melhor representou o Movimento Antropofágico - fundado por Oswald de Andrade -, cuja pretensão era aproveitar a boa cultura universal para a criação de uma cultura verdadeiramente nacional.
Mário ainda foi colaborador de outras publicações, como A Gazeta, A Cigarra, O Echo, Papel e Tinta, Klaxon, Diário Nacional, Folha de São Paulo e Diário de São Paulo. Foi diretor do Instituto de Artes da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (então Universidade do Distrito Federal) entre os anos de 1938 e 1942, ano em que retornaria para São Paulo para lecionar História da música no Conservatório Dramático e Musical. Fundou o Departamento de Cultura de São Paulo, reafirmando seu interesse e comprometimento com a valorização da cultura brasileira.
Aos 51 anos, no dia 25 de fevereiro de 1945, o escritor faleceu em São Paulo, vítima de um ataque cardíaco. Em 1955 foi publicado o livro Poesias completas, edição que reuniu toda a obra poética de Mário de Andrade, com exceção de seu primeiro livro, Há uma gota de sangue em cada poema, cuja temática diferia em muito de sua produção posterior. Mário foi do experimentalismo, característica da produção dos anos 1920, à reflexão poética, encontrada, sobretudo, no livro Lira Paulistana, de 1942, de onde extraímos o poema Quando eu morrer, que retrata o amor do escritor por sua cidade natal: São Paulo. Boa leitura!
Quando eu morrer
Quando eu morrer quero ficar,
Não contem aos meus inimigos,
Sepultado em minha cidade,
Saudade.
Meus pés enterrem na rua Aurora,
No Paissandu deixem meu sexo,
Na Lopes Chaves a cabeça
Esqueçam.
No Pátio do Colégio afundem
O meu coração paulistano:
Um coração vivo e um defunto
Bem juntos.
Escondam no Correio o ouvido
Direito, o esquerdo nos Telégrafos,
Quero saber da vida alheia,
Sereia.
O nariz guardem nos rosais,
A língua no alto do Ipiranga
Para cantar a liberdade.
Saudade...
Os olhos lá no Jaraguá
Assistirão ao que há de vir,
O joelho na Universidade,
Saudade...
As mãos atirem por aí,
Que desvivam como viveram,
As tripas atirem pro Diabo,
Que o espírito será de Deus.
Adeus.
Por Luana Castro
Graduada em Letras