Enem 2020: leia redações nota 1.000

Tema da versão impressa foi "O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira".

Em 30/03/2021 17h08 , atualizado em 31/03/2021 18h20
Por Adriano Lesme
Júlia Sampaio descreveu como inigualável a sensação de tirar 1000 no Enem

O resultado do Enem 2020 foi divulgado ontem, 29 de março, e apenas 28 estudantes conseguiram a nota máxima (1.000) na prova de redação. Entre eles estão as participantes Júlia Vieira Sampaio, de 18 anos, que mora em Imperatriz, no Maranhão, e Maria Júlia Passos, de 20 anos, de Niterói, Rio de Janeiro.

Júlia participou da versão impressa do Enem, cujo tema da redação foi "O estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira". Em sua proposta de intervenção, sugeriu melhora na qualidade do atendimento a essas doenças, contratação de profissionais especializados e realização de palestras acerca da importância do acolhimento às pessoas doentes e vulneráveis.

Maria Júlia sugeriu que as Secretarias de Educação deveriam desenvolver projetos nas escolas com palestras e dinâmicas que levassem profissionais da psiquiatria e pacientes para debaterem sobre a preconceito que enfrentam. Ela também propôs que o Ministério da Fazenda distribua mais verbas para a área da saúde pública.

Redação da Júlia Sampaio

No filme estadunidense “Coringa”, o personagem principal, Arthur Fleck, sofre de um transtorno mental que o faz ter episódios de riso exagerado e descontrolado em público, motivo pelo qual é frequentemente atacado nas ruas. Em consonância com a realidade de Arthur, está a de muitos cidadãos, já que o estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira ainda configura um desafio a ser sanado. Isso ocorre, seja pela negligência governamental nesse âmbito, seja pela discriminação dessa classe por parcela da população verde-amarela. Dessa maneira, é imperioso que essa chaga social seja resolvida, a fim de que o longa norte-americano se torne apenas uma ficção.

Nessa perspectiva, acerca da lógica referente aos transtornos da mente no espectro brasileiro, é válido retomar o aspecto supracitado quanto à omissão estatal nesse caso. Segundo a OMS (Organização Mundial da Saúde), o Brasil é o país com maior número de casos de depressão da América Latina e, mesmo diante desse cenário alarmante, os tratamentos às doenças mentais, quando oferecidos, não são, na maioria das vezes, eficazes. Isso acontece pela falta de investimentos em centros especializados no cuidado para com essas condições. 

Consequentemente, muitos portadores, sobretudo aqueles de menor renda, não são devidamente tratados, contribuindo para sua progressiva marginalização perante o corpo social. Esse contexto de inoperância das esferas de poder exemplifica a teoria das Instituições Zumbis, do sociólogo Zygmunt Bauman, buque as descreve como presentes na sociedade, mas que não cumprem seu papel com eficácia. Desse modo, é imprescindível que, para a completa refutação da teoria do estudioso polonês, essa problemática seja revertida.

Paralelamente ao descaso das esferas governamentais nessa questão, é fundamental o debate acerca da aversão ao grupo em pauta, uma vez que ambos representam impasses para a completa socialização dos portadores de transtornos mentais. Esse preconceito se dá pelos errôneos ideais de felicidade disseminados na sociedade como metas universais. Entretanto, essas concepções segregam os indivíduos entre os “fortes” e os “fracos”, em que os fracos, geralmente, integram a classe em discussão, dado que não atingem os objetivos estabelecidos, tal como a estabilidade emocional. Tal conjuntura segregacionista contrária o princípio do “Espaço Público”, da filósofa Hannah Arendt, que defende a total inclusão dos oprimidos — aqueles que possuem algum tipo de transtorno, nesse caso — na teia social. Dessa maneira, essa celeuma urge ser solucionada, para que o princípio da alemã se torne verdadeiro no país tupiniquim.

Portanto, são essenciais medidas operantes para a reversão do estigma associado às doenças mentais na sociedade brasileira. Para isso, compete ao Ministério da Saúde investir na melhora da qualidade dos tratamentos a essas doenças nos centros públicos especializados de cuidado, destinando mais medicamentos e contratando, por concursos, mais profissionais da área, como psiquiatras e enfermeiros. Isso deve ser feito por meio de recursos liberados pelo Tribunal de Contas da União — órgão que aprova e fiscaliza feitos públicos—, com o fito de potencializar o atendimento a esses pacientes e oferecê-los um tratamento eficaz. Ademais, palestras devem ser realizadas em espaços públicos sobre os malefícios das falsas concepções de prazer e da importância do acolhimento das pessoas doentes e vulneráveis. Assim, os ideais inalcançáveis não mais serão instrumentos segregadores e, finalmente, a situação de Fleck não mais representará a dos brasileiros.

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Redação da Maria Júlia Passos

A obra “Holocausto Brasileiro”, da escritora e jornalista Daniela Arbex, retrata as péssimas condições do maior hospital psiquiátrico do país, na cidade de Barbacena. Nesse livro, os pacientes são tratados por meio de métodos arcaicos e invasivos, desde agressões psicológicas até choques elétricos, demonstrando a violência sofrida por indivíduos portadores de transtornos psíquicos. Assim, além de expor os abusos do sistema de saúde da época, o texto também é atual, uma vez que o preconceito e a omissão estatal perpetuam o estigma associado às doenças mentais no Brasil. 

Em primeiro lugar, cabe ressaltar que a falta de informação da sociedade brasileira é o principal catalisador da problemática. De fato, o avanço da tecnologia e dos meios de comunicação é responsável pela rápida disseminação de notícias, principalmente no meio digital, mas isso não significa que os cidadãos se encontram mais conscientes acerca de temáticas sociais. Dessa forma, mesmo que diversos estudos atuais demonstrem a relevância da saúde mental e a legitimidade dos distúrbios psíquicos, as raízes de uma intolerância generalizada ainda questionam a veracidade da doença. Consequentemente, os indivíduos portadores de transtornos psicológicos vivem em um meio degradante de discriminação estrutural, enfrentando constantemente a invisibilidade presente na sociedade brasileira. De acordo com a escritora nigeriana Chimamanda Adichie, a rotulação de grupos sociais através de uma característica marcante é responsável pela criação de histórias únicas, as quais são repletas de preconceitos. Nesse viés, ao negligenciar a complexidade das pessoas com distúrbios mentais, devido a estigmas baseados no estereótipo de incapacidade ou de invalidez desses indivíduos, a sociedade míope alimenta uma visão eugenista e tóxica, limitando as diversas possibilidades de manifestação do ser humano.

Ademais, a ausência de compromisso do Estado para com a saúde mental dos cidadãos é outro ponto que fomenta o estigma criado sobre o problema. De certo, a falta de incentivos financeiros na área da psiquiatria e na acessibilidade é a realidade enfrentada no país, resultando nos diagnósticos tardios e na exclusão de uma parcela significativa da sociedade que necessita de cuidados especiais. Segundo o filósofo John Rawls, em sua obra “Uma Teoria da Justiça”, um governo ético é aquele que disponibiliza recursos financeiros para todos os setores, promovendo uma igualdade de oportunidades a todos os cidadãos e o acesso a uma vida digna. Sob essa óptica, torna-se evidente que o Brasil não é um exemplo dessa ética do pensador inglês, visto que negligencia a saúde mental dos brasileiros ao não investir corretamente nos setores públicos voltados ao atendimento e ao acolhimento desses indivíduos, submetendo-os a uma notória subcidadania. 

Fica exposta, portanto, a necessidade de medidas para mitigar o estigma associado aos transtornos. Destarte, as Secretarias de Educação devem desenvolver projetos educativos, por meio de palestras e de dinâmicas que levem profissionais da saúde mental e pacientes para debaterem sobre o preconceito enfrentado no cotidiano, uma vez que o depoimento individual sensibiliza os estudantes. Isso deve ser feito com a finalidade de ultrapassar os estereótipos prejudiciais. Outrossim, o Ministério da Fazenda deve redistribuir as verbas, principalmente para hospitais públicos e para campanhas de conscientização. Por fim, será possível criar um país mais democrático e longe da realidade retratada por Daniel Arbex.