Comentário Redação Enem 2020

Por Oficina do Estudante

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Tema importante, pertinente e dentro do padrão esperado para o Enem. A primeira das três provas de redação já oficialmente agendadas* para a edição 2020 do Exame Nacional faz o que ele se propôs a fazer desde sempre**: pautar uma situação-problema, ou seja, uma questão social brasileira relevante, que demanda respostas as mais diversas, e pelas mãos dos mais diversos atores para ser resolvida. Neste caso, os candidatos deveriam propor caminhos para vencer um estigma, para vencer uma marca que complica a vida de tantos brasileiros acometidos por algum distúrbio mental, carimbados como incapazes, incômodos e incompetentes, só para ficar nos adjetivos mais amenos.

*Haverá, a exemplo do que ocorreu em 2016, pelo menos outros dois Enem: o digital, nos dias 31 de janeiro e 7 de fevereiro – e com milhares de participantes pela primeira vez –, e a segunda aplicação e o PPL nos dias 23 e 24 de fevereiro. Resta saber, ainda, se os candidatos amazonenses farão a primeira prova deles nas mesmas datas da reaplicação e se haverá uma segunda chance para os candidatos que estiverem doentes, sobretudo com covid-19, nessa reaplicação;

**Haverá, a exemplo do que ocorreu em 2016, pelo menos outros dois Enem: o digital, nos dias 31 de janeiro e 7 de fevereiro – e com milhares de participantes pela primeira vez –, e a segunda aplicação e o PPL nos dias 23 e 24 de fevereiro. Resta saber, ainda, se os candidatos amazonenses farão a primeira prova deles nas mesmas datas da reaplicação e se haverá uma segunda chance para os candidatos que estiverem doentes, sobretudo com covid-19, nessa reaplicação;

AS TESES

As teses poderiam seguir caminho semelhante ao das que tratam do legado da escravidão de negros no Brasil: para uns, o legado é uma democracia racial, em que “todos teriam a mesma cor, os mesmos direitos e os mesmos deveres”; para outros, o legado é o mais cruel racismo – estrutural, institucional e escancarado. Com relação a doenças (ou distúrbios ou transtornos) mentais, há também quem pense que o melhor a fazer é separar “essas pessoas” do convívio dos “normais”; há muitos, porém, que acham que ser diferente é a coisa mais normal do mundo. Se, numa primeira lida, o tema parecesse abranger deficiências psíquicas, a coletânea reorienta a leitura e situa a discussão nas doenças mentais por assim dizer adquiridas, sobretudo naquelas classificadas como males da modernidade, como a depressão.

As teses, enfim, deveriam responder à seguinte questão: por que brasileiros com doenças mentais são estigmatizados? O estigma, aliás, vem de longe, objeto de uma das obras-primas machadianas, a novela “O alienista”, mordaz crítica ao cientificismo, que alertava, bem ao gosto do Bruxo do Cosme Velho, fã de Shakespeare, que havia mais coisas entre o céu e a terra do que supunha nossa vã filosofia. Sinônimos para esses perturbados sempre povoaram o cotidiano: do antigo tantã ao mais recente fora da casinha. São muitos os rótulos, sobretudo porque tais situações atentam contra a suposta normalidade da vida, abalam o status quo, desequilibram o cotidiano modorrento e sem intercorrências. As estratégias de introdução do texto, para muito além do que a excelente coletânea oferecia, encontraram um leque de possibilidades robusto e eficiente.

A COLETÂNEA

O Texto I, um excerto reproduzido do portal da Secretaria Estadual de Saúde do Paraná, define o que é saúde mental e ressignifica o alcance do que vulgarmente se considera doenças mentais; certamente, fonte de termos e situações que podem ser usadas como ilustração em vários argumentos. Já o Texto II, bem ao estilo de muitas propostas da Fuvest, trazia a definição do termo ‘estigma’, a mesma encontrada nos melhores dicionários, e tratava mais profundamente dos rótulos a que os doentes estão submetidos; é a reprodução de um excerto publicado no portal da Abrata, uma ONG que reúne familiares, amigos e “portadores de transtornos afetivos” (o candidato, no entanto, não tinha acesso a essa informação). Por fim, o Texto III é um infográfico que resume vários dados de uma extensa pesquisa divulgada pela OMS, a Organização Mundial da Saúde, com recortes da situação brasileira na esfera da saúde mental: o País é o mais depressivo da América Latina. Havia muitos dados numéricos para comprovar tal afirmação, além de mostrar, também em números, o impacto econômico do acometimento dessas doenças. O candidato antenado poderia facilmente estabelecer um paralelo entre a necessidade de vacinação contra a covid-19 para que a economia volte a funcionar e as perdas que se tem a partir do estigma e da incompreensão que rondam as doenças mentais – um dos muitos percursos argumentativos possíveis, é claro. Cabe o comentário: desde 2012, talvez seja esta a melhor coletânea já produzida pelo Inep.

AS INTERVENÇÕES

Para além da previsível sugestão de “palestras nas escolas a fim de conscientizar os brasileiros desde cedo”, o bom candidato deveria explorar os papéis dos vários atores envolvidos nessa conscientização: a indústria do entretenimento, no sentido de expor corretamente situações peculiares em novelas, peças, shows de humor, exposições de arte; a Academia, no sentido de abastecer com subsídios científicos a Imprensa, que, por sua vez, poderia abrir espaços nobres para a discussão de tema tão impactante em termos econômicos; o Estado, que além de investir ainda mais no atendimento gratuito dessas vítimas precisaria abraçar a causa como prioritária, estabelecendo programas, protocolos e procedimentos que envolvam o mercado de trabalho, a Justiça e bem-estar social; o 2o setor, causador em grande medida de muitos desses distúrbios por causa da competição insana que promove nas mais diversas áreas, como protagonista de uma mudança cultural de alcance corporativo, respeitando os trabalhadores e sendo punidos por uma legislação trabalhista justa e acolhedora.

Há mais duas provas de redação ainda nesta edição do Enem 2020; que sejam tão boas quanto esta. Em 2016, quando houve excepcionalmente três Enem, os temas foram ótimos: caminhos para combater a intolerância religiosa (1ª aplicação), o racismo (2ª aplicação) e o desperdício de alimentos (PPL). Que os estudantes tenham a mesma satisfação de poder opinar a respeito de problemas tão importantes nesta edição também!