Confidência do Itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa…
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Os versos que abrem este artigo são de Carlos Drummond de Andrade, considerado o maior poeta brasileiro do século XX e um dos principais nomes da Literatura em Língua Portuguesa. Confidência do Itabirano representa a poética drummondiana memorialista, um poema autobiográfico sobre o escritor que melhor representou a poesia da segunda geração modernista.
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro (hoje apenas Itabira), Minas Gerais, no dia 31 de outubro de 1902. De uma tradicional família de fazendeiros e mineradores, atividades que predominavam na região àquela época, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo, no estado do Rio de Janeiro. Regressou ao seu estado natal e na cidade de Ouro Preto formou-se farmacêutico, ofício que jamais exerceu. Em 1925, aos vinte e três anos, foi um dos fundadores de A Revista, publicação que representava a estética modernista em Belo Horizonte, tendência com a qual o poeta já mostrava grande identificação.
Em 1934, Drummond ingressou no serviço público, atuando como chefe de gabinete do Ministro da Educação, Gustavo Capanema, no Rio de Janeiro. Posteriormente, transferiu-se para o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, aposentando-se em 1962. A vida de funcionário público não impediu que o poeta se dedicasse à Literatura: colaborou como cronista em dois grandes jornais, o Correio da Manhã e o Jornal do Brasil, e simultaneamente produziu sua obra poética, cuja dimensão e riqueza continuam a despertar a atenção de admiradores e estudiosos.
Foi exímio prosador — contista e cronista inigualável —, mas foi na poesia que Drummond destacou-se. Também foi tradutor de grandes nomes da literatura universal, como Balzac, Choderlos de Laclos, Marcel Proust, García Lorca, François Mauriac e Molière. Enquanto traduzia, era traduzido, seus livros ganharam versões em diversas línguas, entre elas o espanhol, inglês, francês, italiano, alemão, sueco, tcheco, entre outras. A relevância e genialidade de sua obra justificaram a grande projeção internacional, tendo sido considerado um dos escritores mais influentes da Literatura Brasileira no século XX. O poeta faleceu no Rio de Janeiro, no dia 17 de agosto de 1987, poucos dias depois do falecimento de sua única filha, a também escritora Maria Julieta Drummond de Andrade.
A imagem acima é capa do CD Maria Julieta entrevista Carlos Drummond de Andrade. A entrevista foi feita em 1984, na sala de jantar da casa do poeta **
Quanto aos aspectos literários, a obra de Carlos Drummond de Andrade pode ser dividida em quatro fases:
Fase gauche (década de 30): Representada pelas obras Alguma poesia, de 1930, e Brejo das almas, de 1934, esteve bastante associada à estética defendida pelos primeiros modernistas. Nos poemas que integraram essa fase, pode-se notar uma linguagem permeada pela ironia e humor, além de uma forte influência do gauchismo, palavra de origem francesa que significa “lado esquerdo”. Metaforicamente, simbolizava o indivíduo que não conseguia adequar-se às convenções, um ser torto que se comunicava com a vida e com a realidade através do canto. O Poema de sete faces, do livro Alguma poesia, ilustra bem o pessimismo, a reflexão existencial e o individualismo, traços característicos da fase gauche:
Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
(Carlos Drummond de Andrade, in 'Alguma poesia')
Fase social (1940-1945): Na fase social, Drummond abandonou o isolamento e o individualismo, temáticas predominantes na fase gauche, e passou a demonstrar grande interesse pelos problemas da vida social. Essa mudança estava relacionada com o contexto histórico da época, pois o mundo assistia à época a ascensão de regimes totalitários, como o nazismo e o fascismo, a Segunda Guerra Mundial e, no Brasil, a ditadura de Vargas. Tais acontecimentos forjaram o nascimento de uma literatura engajada e comprometida com a vida dos homens. O poema Congresso Internacional do Medo, do livro Sentimento do Mundo, representa a fase social:
Congresso Internacional do Medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio porque esse não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte,
depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
(Carlos Drummond de Andrade, in 'Sentimento do Mundo')
Grande prosador, exímio cronista e contista, foi na poesia que Carlos Drummond de Andrade destacou-se como um dos maiores poetas do século XX
Fase do “não” (décadas de 1950 e 1960): Passados os grandes conflitos históricos que fomentaram a fase social na poesia drummondiana, o poeta voltou-se para temas como a filosofia e a metafísica, características encontradas em sua poesia filosófica. Ao mesmo tempo, Drummond desenvolveu a poesia nominal, com tendências ao Concretismo, cuja preocupação estende-se aos recursos gráficos do texto. As obras Claro enigma, de 1951, Fazendeiro do ar, de 1955, e Vida passada a limpo, de 1959, representam a poesia filosófica, enquanto Lição de coisas, de 1962, representa a chamada poesia nominal.
A ingaia ciência
A madureza, essa terrível prenda
que alguém nos dá, raptando-nos, com ela,
todo sabor gratuito de oferenda
sob a glacialidade de uma estela,
a madureza vê, posto que a venda
interrompa a surpresa da janela,
o círculo vazio, onde se estenda,
e que o mundo converte numa cela.
A madureza sabe o preço exato
dos amores, dos ócios, dos quebrantos,
e nada pode contra sua ciência
e nem contra si mesma. O agudo olfato,
o agudo olhar, a mão, livre de encantos,
se destroem no sonho da existência.
(Poesia filosófica, Carlos Drummond de Andrade, in 'Claro Enigma')
Amar-amaro
Por que amou por que amou
se sabia
p r o i b i d o p a s s e a r s e n t i m e n t o s
ternos ou desesperados
nesse museu do pardo indiferente
me diga: mas por que
amar sofrer talvez como se morre
de varíola voluntária vágula evidente?
ah PORQUE AMOU
e se queimou
todo por dentro por fora nos cantos nos ecos
lúgubres de você mesm (o, a)
irm(ã,o) retrato espéculo por que amou?
se era para
ou era por
como se entretanto todavia
toda via mas toda vida
é indagação do achado e aguda espostejação
da carne do conhecimento, ora veja
permita cavalheir(o,a)
amig(o,a) me releve
este malestar
cantarino escarninho piedoso
este querer consolar sem muita convicção
o que é inconsolável de ofício
a morte é esconsolável consolatrix consoadíssima
a vida também
tudo também
mas o amor car (o,a) colega este não consola nunca de núncaras.
(Poesia nominal, Carlos Drummond de Andrade, in 'Lição de coisas')
Fase da memória (décadas de 1970 e 1980): A fase final da poesia drummondiana contemplou aspectos memorialistas, aprofundando temas que permearam toda a obra do poeta. A infância, a cidade natal, a família, o humor, a autoironia e outros temas ligados às diferentes fases voltaram a ser assunto nas obras Boitempo & a falta que ama, Menino antigo (Boitempo II e Esquecer para lembrar), Boitempo III, As impurezas do branco, Amor amores, Discurso de primavera, A paixão medida, Corpo, Amor, sinal estranho, entre outras.
Comunhão
Todos os meus mortos estavam de pé, em círculo,
eu no centro.
Nenhum tinha rosto. Eram reconhecíveis
pela expressão corporal e pelo que diziam
no silêncio de suas roupas além da moda
e de tecidos; roupas não anunciadas
nem vendidas.
Nenhum tinha rosto. O que diziam
escusava resposta,
ficava, parado, suspenso no salão, objeto
denso, tranquilo.
Notei um lugar vazio na roda.
Lentamente fui ocupá-lo.
Surgiram todos os rostos, iluminados.
(Carlos Drummond de Andrade in 'A paixão medida')
*A imagem que ilustra o artigo é capa do periódico 'Cadernos de Literatura Brasileira', do Instituto Moreira Salles.
** A imagem que ilustra o miolo do artigo é capa do CD 'Maria Julieta entrevista Carlos Drummond de Andrade', gravadora Luz da Cidade.
Por Luana Castro
Graduada em Letras