ANALISE COLÉGIO OFICINA DO ESTUDANTE
A proposta de redação da prova Enem 2021 apresentou ao candidato a seguinte frase-tema: “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”. Como de costume, as instruções orientavam o candidato a redigir um texto dissertativo-argumentativo sobre tal questão, apresentando uma proposta de intervenção que, respeitando os direitos humanos, encaminhasse resoluções para a questão. Uma abordagem adequada da proposta passaria pela articulação entre o conceito de invisibilidade social e o direito ao registro civil para, em seguida, reconhecê-lo como o meio pelo qual assegura-se a cidadania ao indivíduo e, logo, seus direitos civis. Para o embasamento da discussão, foi oferecida uma coletânea com 4 textos de diferentes fontes e gêneros discursivos, cuja interpretação auxiliou o candidato a situar-se em relação aos conceitos-chave da frase-tema.
O Texto 1 é um excerto de uma tese de doutorado que aponta para o conceito de invisibilidade social em sua relação com o registro civil, cuja autora descreve uma cena flagrada por ela no Rio de Janeiro por meio do relato de um estudo de campo: idas e vindas de pessoas pobres e marginalizadas para a obtenção da certidão de nascimento na Vara da Infância e Juventude, localizada na Praça Onze, parte do centro histórico da cidade. Já o Texto 2 oferecia o trecho de uma matéria jornalística, a qual apresentou dados relevantes para dimensionamento e problematização da questão: situou o candidato quanto à gratuidade do registro, garantido pela Lei nº 9.534/97, e ofereceu um infográfico com o número de pessoas sem registro em cada região brasileira, destacando-se a região sudeste com 1,15 milhão.
A compreensão articulada dos Textos 1 e 2 garante bons recursos para o planejamento da argumentação. Enquanto o Texto 2 sugere que, além da barreira monetária, haveria outras razões (ou causas) que impedem milhares de brasileiros de oficializar seu registro civil, o Texto 1 apresenta uma cena narrativa cujos detalhes permitem vislumbrar algumas dessas outras razões, como dificuldades de locomoção e acesso aos centros de registro ou, ainda, de instrução do cidadão de baixa renda e escolaridade. Além disso, destacam-se algumas informações relevantes para uma análise social mais crítica, como o fato de ser uma situação persistente, recorrente e com alta incidência mesmo em regiões de melhores indicadores socioeconômicos, como é o caso do sudeste.
Por sua vez, o Texto 3 permitiu compreender a importância da documentação pessoal ao indicá-la como um instrumento que assegura uma série de outros direitos civis ao cidadão, como é o caso dos direitos educacionais, políticos, trabalhistas e outros benefícios sociais. Considerando-se essas informações à luz do retrato oferecido pelos textos anteriores, torna-se possível vislumbrar algumas consequências da perpetuação dessa problemática social, como a manutenção da pobreza, a negação do direito à educação e a perpetuação do trabalhador na informalidade. Tais informações apresentadas pela coletânea encontram sua síntese no Texto 4, que sugere a atuação dos/as defensores/as públicos no enfrentamento da defasagem no registro civil da população invisibilizada, articulando-se ao Texto 1, que aludiu à Vara da Infância e Juventude, e situando-se como uma possível sugestão à criação de medidas de solução ao problema. Quanto a esse aspecto, o candidato poderia propor ações protagonizadas por esses mesmos atores sociais, bem como outros que julgasse pertinentes, os quais trabalham na identificação da população não registrada e no provimento de recursos que permita a oficialização do registro junto aos órgãos competentes.
Além das informações oferecidas pela coletânea, o candidato deveria mobilizar os conhecimentos de seu repertório para sustentar sua discussão sobre o tema, o que poderia ser feito recorrendo-se a referências culturais e midiáticas (livros, filmes, séries, músicas) ou, ainda, a documentos oficiais, completando informações apresentadas nos textos (como é o caso do Estatuto da Criança e do Adolescente). Considera-se, assim, que a prova de redação do Enem 2021 oferecia as condições suficientes para o bom desenvolvimento de uma redação que contemplasse as exigências da prova, contribuindo também para um debate social de uma problemática muito relevante e atual.
ANÁLISE POLIEDRO EDUCAÇÃO
O tema da redação do Enem 2021 manteve a tendência de trabalhar com direitos garantidos aos cidadãos. Contudo, neste ano, não foi escolhido um recorte ou direito específico como nos anos anteriores - saúde mental (2020) ou acesso ao cinema (2019), enquanto eixos da saúde e da cultura, respectivamente -, mas sim uma abordagem ampla que se coloca como passaporte para todos os outros direitos assegurados constitucionalmente: o registro civil que é, inclusive, gratuito.
A frase temática trouxe uma interessante relação de causa e consequência: o registro civil é um documento que garante o acesso à cidadania, isto é, ao atributo jurídico de cidadão. Além dessa relação, a frase ainda trazia o problema advindo da ausência do registro: a invisibilidade. Eram, portanto, duas relações envolvendo causa e consequência - o direito que leva à cidadania, uma vez ausente, acarreta a invisibilidade. A frase longa requeria leitura atenta, pois há nela elementos concretos como o registro e a cidadania e um outro simbólico: a invisibilidade.
Era necessário interpretar que, por meio da certidão de nascimento, o indivíduo deixa de ser apenas sujeito e ganha status de cidadão, ou seja, deixa de ser invisível, uma vez que aparecerá nas pesquisas, estatísticas, integrará políticas públicas e terá acesso a outros tipos de registro como RG, CPF e Título de Eleitor. Sem o documento fundador e os demais documentos, os direitos fundamentais como educação, moradia, saúde, mobilidade e as políticas de promoção a esses direitos ficam inacessíveis.
A prova apresentou quatro textos motivadores, sendo o primeiro deles um trecho do trabalho acadêmico de Fernanda da Escóssia intitulado Invisíveis: uma etnografia sobre identidade, direitos e cidadania nas trajetórias de brasileiros sem documento e que deu origem ao livro recém-lançado “Invisíveis - Uma etnografia sobre Brasileiros sem Documento”. O texto trazia informações sobre jovens, velhos e crianças em busca de sua documentação e que, ao serem entrevistados, revelavam sua vergonha e o fato de considerarem-se “pessoas que não existem” porque nunca foram reconhecidos oficialmente pelo Estado.
Os brasileiros e brasileiras invisíveis são, em geral e conforme apontava o texto I da proposta, pobres, negros, moradores das zonas rurais, além daqueles que vivem em situação de rua. Trazem em comum a marca da vulnerabilidade que os mantém nessa condição. Consequentemente, são objeto de deboche, negligência social e governamental, isolamento, exploração e perpetuam um ciclo de pobreza e abandono. O primeiro texto ainda registrava a auto-depreciação que essas pessoas fazem de si mesmas, uma vez que consideram-se “um nada”.
Contrariamente ao cidadão médio brasileiro que acaba se hiperdocumentando por acumular RG, CPF, CNH e outras siglas que o permitem gozar da condição de cidadão, os “não-cidadãos” protagonizam o trabalho informal, a falta de tratamento para doenças, o analfabetismo e, mais recentemente, foram impedidos de receber o auxílio emergencial, impossibilitados de vacinar-se contra o Covid-19 e outras tantas mazelas que revelam o quanto uma Constituição que assegura direitos é apenas um papel sem que esse ponto de partida - o registro civil - seja praticado.
Essa linha de raciocínio, aliás, podia ser identificada na leitura do segundo texto motivador, o qual dava conta de que a Lei 9.534, de 1997, que garante a gratuidade do registro não é plenamente cumprida, visto que muitas pessoas não têm certidão de nascimento no Brasil. Nesse sentido, constata-se que não é a falta de recursos financeiros que impede a visibilidade.
O mesmo texto ainda continha um mapa da invisibilidade no Brasil com estimativas de quantas pessoas não têm esse registro em cada região, com destaque para o dado de que são 898 mil no nordeste e 1,15 milhão no sudeste. A interpretação desses dados poderia levar os candidatos e candidatas a perceberem que a região mais rica do país é também aquela com mais invisíveis. Dessa percepção poderia aparecer um caminho de problematização que apontasse a marginalização presente em torno dos grandes centros brasileiros.
O terceiro texto mostrava os benefícios e o caráter essencial em se ter o registro civil, dado que o sistema brasileiro de documentação é encadeado. Sem esse registro, então, não se pode ter RG e outros documentos necessários à garantia dos demais direitos fundamentais. As consequências listadas no texto e acrescidas aqui são: a impossibilidade de matricular-se ou mesmo de um adulto sem registro matricular seus filhos na escola, o impedimento de deslocamento interestadual, a falta de acesso ao calendário de vacinação, à carteira de trabalho e a impraticabilidade de ter conta bancária. Esse último dado, por exemplo, foi responsável pela dificuldade enfrentada pelo governo federal ao longo da pandemia para pagar a quem de direito o auxílio emergencial.
O quarto e último texto era uma peça de divulgação que trazia a imagem do rosto de uma menina sobreposto por digitais ao lado da frase “Onde existem pessoas, nós enxergamos cidadãos”. Ainda na imagem podia-se ler: “Defensoras e Defensores Públicos pelo direito à documentação pessoal”. A peça integrou a campanha nacional da entidade em 2018.
A partir de uma atenta leitura de toda a prova era possível, portanto, chegar aos elementos principais constituintes das habilidades avaliadas na redação do Enem, isto é, formular uma tese a partir das causas e consequências da invisibilidade decorrente da ausência de registro civil e, também, elaborar a proposta de intervenção como forma de solucionar essa problemática e garantir a cidadania.
Alguns atores da esfera governamental, principalmente do âmbito jurídico, poderiam ser utilizados na redação como agentes da proposta de intervenção: as Defensorias Públicas Estaduais (citadas no texto 4) e o Ministério Público, por exemplo, por terem papel de assistência jurídica. O Ministério da Justiça, que pode promover campanhas e mutirões para identificar e orientar essas pessoas e, também, os Cartórios de Registro, que são entidades de caráter privado as quais constituem atividades de serviço público.
O aluno também poderia mobilizar o terceiro setor como parte de sua proposta de intervenção ao indicar, por exemplo, a atuação de Organizações não Governamentais como é o caso da iniciativa SP Invisível, que apoia parcelas da população em situação de vulnerabilidade visando minimizar a invisibilidade ocasionada, muitas das vezes, pela falta de documentos.
Caso o candidato trouxesse em seu repertório exemplos de direitos cujo acesso deixa de ser garantido em função da invisibilidade ocasionada, poderia mobilizar conceitos do filósofo francês Pierre Bourdieu como Habitus, Capital Cultural e Violência Simbólica.
Dentre os historiadores e estudiosos da história do Brasil, poderiam ser referenciadas Lilia Schwarcz e Heloisa Starling que na obra, "Brasil: uma biografia", apontam ao leitor as idiossincrasias da sociedade brasileira com destaque para "a difícil e tortuosa construção da cidadania". As autoras defendem que embora o país possua uma das legislações mais avançadas do mundo, muito do que nela se prevê não se concretiza. Na redação do Enem, seria possível discutir como tal dificuldade se deve, em grande parte, aos obstáculos - como por exemplo a desinformação - para a realização do registro civil de muitos brasileiros, o que provoca, consequentemente, a invisibilidade deles e compromete o acesso a uma ampla gama de direitos.
Ainda nessa linha, o historiador José Murilo de Carvalho que tematizou a cidadania no Brasil enquanto fenômeno histórico. Sua tese é a de que, ao longo da história, o fato de as diversas dimensões dos direitos não estarem interligadas desembocam numa “cidadania inconclusa”
No campo das artes, mais especificamente a literatura, seria possível fazer uso produtivo das obras Capitães da Areia e Vidas Secas que, em suas narrativas, apresentam personagens sem nome que sintetizam ficcionalmente os brasileiros indocumentados. Outro clássico da literatura brasileira é Severino, de Morte e Vida Severina do autor João Cabral de Melo Neto que, dada sua existência limítrofe, recebeu como sobrenome o nome de seus pais e parecia, portanto, não ter um registro civil oficial.
Ainda que o tema possa ter surpreendido os candidatos e a frase temática tenha sido elaborada de maneira longa e com certa complexidade (remetendo, inclusive, à frase temática de 2018 que, igualmente, apresentou-se longa e com relação de causa e consequência), é possível afirmar que os textos motivadores propiciaram a elaboração de um bom projeto de texto, assim possibilitando a realização de uma escrita condizente com as habilidades requeridas na prova.