"Os seres humanos precisam narrar. Não para se distrair, não como uma forma lúdica de relacionamento, mas para alimentar e estruturar o espírito, assim como a comida alimenta e estrutura o corpo."
Vida e obra de Marina Colasanti
A frase que você leu acima é de autoria de Marina Colasanti, uma das maiores escritoras da literatura brasileira. Brasileira de coração, Marina nasceu na cidade de Asmara, capital da Eritreia, no dia 26 de setembro de 1937. Asmara era colônia italiana, nacionalidade de seus pais, que, por ocasião da Segunda Guerra Mundial, emigraram para o Brasil em 1948.
Nascida no norte da África, viveu a maior parte da infância na Itália, mas foi no Brasil que Marina descobriu-se artista: sua carreira profissional teve início nas artes plásticas e, em 1958, já participava de vários salões, como o VII Salão de Arte Moderna. Todavia, foi na literatura que tornou-se conhecida e, em 1968, lançou seu primeiro livro, Eu Sozinha. Enquanto tecia os fios de sua extensa obra, atuou como colaboradora de periódicos, além de também ter sido apresentadora de televisão, roteirista e tradutora.
A autora tem publicados mais de 40 títulos, entre eles literatura infantil e poesia. Na literatura adulta, reflete sobre os fatos cotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte e os problemas sociais brasileiros, sem nunca perder a sensibilidade, uma de suas maiores características.
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
(Do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996)
Na literatura infantil, seus “contos de fadas” ganharam destaque: preservando os elementos próprios das narrativas que remetem o leitor à Idade Média e equilibrando com maestria os gêneros narrativo e lírico, Marina discute sobre temas atuais, como o consumismo desenfreado, a inveja, o egoísmo e as relações humanas. A linguagem de Marina Colasanti encanta a todos os leitores, e sua obra tem ganhado cada vez mais a atenção do público e da crítica, que sempre encontram segredos nas entrelinhas de seus textos.
Obra de Marina Colasanti
Passageira em trânsito (2010) Minha Ilha Maravilha (2007) Acontece na cidade (2005) Fino sangue (2005) O homem que não parava de crescer (2005) 23 histórias de um viajante (2005) Uma estrada junto ao rio (2005) A morada do ser (1978, 2004) Fragatas para terras distantes (2004) A moça tecelã (2004) Aventuras de pinóquio – histórias de uma marionete (2002) A casa das palavras (2002) Penélope manda lembranças (2001) A amizade abana o rabo (2001) Esse amor de todos nós (2000) Ana Z., aonde vai você? (1999) Gargantas abertas (1998) O leopardo é um animal delicado (1998) Histórias de amor (1997) Longe como o meu querer (1997) |
Eu sei mas não devia (1995) Um amor sem palavras (1995) Rota de colisão (1993) De mulheres, sobre tudo (1993) Entre a espada e a rosa (1992) Cada bicho seu capricho (1992) Intimidade pública (1990) A mão na massa (1990) Será que tem asas? (1989) Ofélia, a ovelha (1989) O menino que achou uma estrela (1988) Aqui entre nós (1988) Um amigo para sempre (1988) Contos de amor rasgado (1986) O verde brilha no poço (1986) E por falar em amor (1985) Lobo e o carneiro no sonho da menina (1985) A menina arco-íris (1984) Doze reis e a moça no labirinto do vento (1978) Uma Ideia toda Azul (1978) |
*A imagem que ilustra o artigo foi feita a partir de capas de livros da escritora.
Por Luana Castro
Graduada em Letras