Encarnação

Por Marla Rodrigues

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Amália era uma das maiores belezas da corte do Rio de Janeiro e pretendentes não lhe faltavam, mas ela tinha uma verdadeira desilusão quanto ao casamento, preferindo inúmeras vezes a vida de solteira. Sua alma ainda não se desligara da infância e por muitas vezes, com suas bonecas ainda presentes em um canto do seu aposento, simulava as quadrilhas que tinha vivido durante a noite no salão.

Como vizinho tinha o chamado Hermano, um homem extremamente reservado e que tinha muitas variações de humor. Ora agradavelmente na rua cumprimentava a seus conhecidos e amigos e ora se fechava em uma espécie de melancolia reservada em que não se mostrava nem minimamente sociável. A casa em que vivia estava sempre fechada e com a pintura desgastada. Vivia ali apenas com seus empregados e uma espécie de mordomo, Abreu.

Amália veio conhecer a história de Hermano por intermédio de seu amigo, Henrique Teixeira. Acontecia que Hermano fora casado com uma moça chamada Juliana, o casamento surpreendeu a todos já que a moça não era nem bela nem freqüentadora da sociedade e poucos eram os que a conheciam. Mas os dois se casaram e o elo entre eles era de um amor extremo e profundo. O mínimo de tempo separados lhes provocavam uma dor inestimável. Hermano até brincava que não possuíam filhos porque se amavam de tal forma que não aceitavam ceder parte deles para que um novo ser, fruto de seu amor, nascesse.

E depois de alguns anos, poucos para eles, Juliana finalmente engravidou e nesse estado faleceu junto ao feto. Daí em diante Hermano se tornou o homem que era, chegava a não querer conhecer e conviver com aqueles que não tinham se relacionado com a esposa enquanto era viva. Nessas circunstâncias, ele passou a viver em uma espécie de alucinação em que vivia trancafiado em casa vivendo com a lembrança da esposa, que ele sentia junto a ele.

Assim Amália conheceu a história de seu vizinho e nasceu nela um íntimo interesse sobre ele. Passava longos momentos observando a casa vizinha e tentando lembrar-se da vez que, quando criança, esteve escondida ali os observando. Foi assim que ela se sentiu como irmã de Juliana e a cada momento se prendia mais à historia dos vizinhos.

Em dado momento, quando pôde observar a casa vizinha, viu Hermano junto a uma mulher que em um dia estava deitava no tocadoro e em outro sentada. Isto despertou sua raiva por Hermano. Tomava as dores da falecida esposa que, em sua visão, estava sendo traída.

A tudo isso, a mãe dela e Henrique Teixeira já tinham chegado até a cogitar um casamento entre a menina e Hermano, visto que ela se interessava tanto pela casa vizinha. Mas o plano de ambos logo se findou.

Finalmente chegou o momento em que se conheceram. Amália tocava piano e a sua voz chamou Hermano até a janela. Nesse primeiro encontro a menina teve como reação fechar a janela, pois ainda se aborrecia da imagem que teve de o ver com outra mulher, traindo Juliana. Depois, ela percebeu que sua voz o atraía e assim talvez pudesse impedí-lo te estar com outra.

Foi assim que em pouco tempo Hermano passou a freqüentar a casa de Amália e os dois logo se prendiam em conversas fúteis a sós em um canto da sala. Como uma possível viagem de Amália e sua família a Europa se aproximava – viagem proposta apenas para retirar a menina da melancolia em que vivia – Hermano foi falar ao pai da moça. Todos esperavam um pedido de casamento, no entanto, como teve que esperar por dois minutos no gabinete do pai dela, sua coragem se dissipou frente à lembrança de Juliana.

A conseqüência desse pedido não feito foi o rompimento das ligações. Porém, poucos dias após tal fato, Hermano escreveu uma carta pedindo a mão da menina em casamento. Amália demorou alguns dias pensando em sua resposta, temia que a ligação que Hermano tinha com sua esposa pusesse em sacrifício a vida dos dois: a dela, por não poder ser amada realmente e muito mais a dele, que se sentiria impuro por “trair” sua esposa.

Mesmo com muitas dúvidas, o casamento se fez. Poucas coisas saíram como Amália esperava. Hermano não estava livre para amá-la e assim a tristeza recaía sobre ela e sobre ele, que se sentia culpado em trair a primeira esposa e ter enganado a segunda. Ainda havia Abreu, amo da falecida, que não gostava de Amália, e os demais criados que não a obedeciam.

Nessas circunstâncias, ela achou melhor falar ao marido que buscassem um modo de se separar sem causar escândalos. As palavras de Hermano fizeram Amália acreditar que ele planejava o suicídio. De fato era o plano dele, mas a esposa o fez prometer que não o faria. Assim ficou decidido entre eles que buscariam tal modo de se separarem.
Estando só em casa, Amália descobriu nos aposentos do marido as portas que davam aos antigos quartos de Juliana. Quando a moça entrou ali, encontrou a mulher que vira há algum tempo. E então compreendeu o que se passava com o marido.

Ele amava uma imagem idealizada que criara, primeiramente a transportara para Juliana, amando mais seu ideal do que de fato sua mulher, e agora se prendia a essa imagem. Prova disso era aquela mulher na sala, que na verdade era uma estátua de cera, que em poucas coisas se assemelhava a Juliana.

O ato seguinte de Amália foi tornar-se a tal mulher idealizada. Com o marido fez uma espécie de pacto de sinceridade e assim, juntos, ficavam horas nos aposentos da falecida. Ali Amália estudava a mulher criada pelo esposo e se tornava a própria, a ponto de tampar seus cabelos loiros com rendas pretas ou tingí-los.

Desta maneira, Hermano amava-a mais, no entanto, às vezes se afastava bruscamente e voltava ao seu quarto. Até mesmo Abreu passara a tratá-la diferente, porém, na alma de Hermano a confusão aumentava, tendo em vista que ele via Amália perder sua personalidade e via também sua mulher “ressurgir”.

Mesmo com as mudanças, Hermano não desistira do plano de suicídio. Pretendia iniciar um incêndio e sua morte seria tida como um acidente. Então dolorosamente esperou que se passassem os dias que faltavam para o contrato com a seguradora acabar – não queria causar gastos com um incêndio proposital.

Finalmente chegado o dia, os dois foram a um baile e Hermano, justificando ter esquecido sua carteira e necessitando de tal para participar dos jogos que ali corriam, foi buscá-la deixando apenas um recado com a mesma justificativa para Amália. Porém ela pressentiu o plano do marido e foi atrás dele.

Hermano estava nos aposentos de Juliana, ligara o gás e esperava para que ele entrasse em contato com a luz da vela, incendiando o cômodo. Enquanto o gás enchia o quarto, Hermano tinha alucinações em que via Amália e Juliana. Sua primeira esposa afastava-se e ele a chamava de volta. Ela dizia que sua alma estava em Amália, pedia para que eles não se separassem, mas Hermano pedia que ela tomasse a alma dela e que os dois fossem juntos embora para a eternidade. E assim selavam com um beijo.
A verdade é que a dona do beijo era Amália, que chegara e encontrara o marido desmaiado. Depois disso saíram da casa, que em grande parte foi incendiada. Anos depois voltaram ali.

Passaram uma temporada na Europa, tempo no qual tiveram uma filha, batizada Juliana, e viveram em plena felicidade. Chegaram a voltar ao Rio para ver se a antiga casa despertava em Hermano algumas lembranças ou tristeza, pois se assim fosse, voltariam para Europa em algum lugar em que nada ameaçasse a felicidade deles. Mas descobriram que o passado era passado.

Por Rebeca Cabral