A pata da gazela

Por Marla Rodrigues

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Na rua da quitanda estavam Laura e Amélia em seu tílburi à espera do seu empregado. Na rua, Leopoldo observava-as. Laura estava impaciente e quando o criado se aproximou ela o apressou. O embrulho que ele trazia estava bem amarrado, mas na pressa de subir no veículo, o pacote se abriu e, sem que se notasse, um par das botinas ficaram caídas no chão. Horácio, um dos mais cobiçados moços da sociedade, um “leão da moda”, pegou a botina que estava na calçada, mas não pôde devolver, visto que o tílburi já tinha partido.

Logo no coração de Leopoldo e de Horácio nasceu o amor. Mas era diferente no coração de cada um. O primeiro se encantou com a alma da moça que viu de relance, na verdade desconhecia sua imagem, porém a amava. Já o segundo, um conhecedor de cada item que compõe as mulheres, se encantou pelo pé desconhecido que calçava aquela botina tamanho 29, e já o considerava o maior dos mimos.

Assim, os dois se lançaram em busca da amada e da dona dos lindos pés. Leopoldo acabou revendo-a no teatro, onde a sua amada alma assumiu forma física. Depois a viu na rua, como que fugindo de seu olhar, com pressa ela subiu em seu tílburi e assim Leopoldo teve um vislumbre dos pés de sua amada. Eram deformes e horrorosos. Isso provocou um desencanto imediato. Na sapataria confirmou sua suspeita, pois lá viu as fôrmas que serviam de molde ao sapateiro, tendo a certeza da deformidade que sua amada levava consigo.

Horácio também estava em busca da dona da botina. Assim como Leopoldo, ele viu Amélia e Laura no teatro, sendo que a segunda fugia de seu olhar. A primeira ele encontrou algumas vezes na rua e admirou seu gracioso andar e depois vendo o rastro que ela deixava ao lado do das amigas na areia do passeio público, teve a convicção de que era Amélia a dona dos pés que calçavam a botina. Sendo assim, em pouco ele deu início a seu convívio com a família.

Amélia freqüentava a casa de D. Clementina, onde dançar era a grande diversão e os parceiros eram poucos, formando pares facilmente. Foi em uma dessas reuniões que ela conheceu Leopoldo, que a observava sem parar. Pela insistência dos olhares acabaram dançando e ali, com eloqüência, ele falou, de certa forma subliminar, que a amava e que conseguia até mesmo amar as suas deformidades.

Horácio freqüentava a casa de Amélia e ali sempre buscava ver o pé dela, mas a menina o escondia com todo o empenho. E assim, em seu máximo desejo de ter pra si o pé que calçava aquela botina, pediu-a em casamento. Amélia tomou como resolução um sim, mas esperou por 15 dias para dizer isto a Horácio para não aumentar-lhe a vaidade. Durante esta quinzena, Horácio, que nunca pensaria em uma resposta negativa, não apareceu na casa.

Nesse tempo houve um baile, Leopoldo já sabia do casamento de Amélia e carregava em seus olhos a tristeza. Foi neste evento que ele e Horacio se encontraram, oportunidade esta que permitiu que um contasse ao outro sua história de amor, sem revelar o nome de suas amadas. Mas Leopoldo não demorou muito a descobrir. Quando os recém-amigos voltaram ao salão, Horácio percebeu uma mudança no humor de sua noiva e a intimidade que ela mostrou ao pedir que ele chamasse seu pai, fez Leopoldo entender quem era a amada de Horácio, e assim, rir-se por seu engano.

Na noite seguinte, Horácio foi à casa de Amélia, que bordava pantufas. A seu noivo ela afirmou que se tratava de um presente a uma amiga, o que justificava o “L” que bordava. Em seguida, distraída com a atividade, descuidou-se da barra do vestido, o que permitiu que Horácio finalmente visse seus pés. Depois de um breve silêncio, ambos se afastaram e ele foi embora mas, depois de se encontrar na rua com o futuro sogro, voltou à casa.

Ali, em nova conversa com Amélia, implicou, propositalmente, com o fato de ela ir às reuniões na casa de D. Celestina, o que justificaria o rompimento do noivado. Ela afirmou que iria lá na noite seguinte e ele contra-argumentou que se ela fosse, ele não voltava mais. Estavam rompidos no dia seguinte.

Na casa de D. Celestina Amélia e Leopoldo se encontraram e ela lhe contou que tinha ouvido a história dele e de Horácio no jardim, naquela noite, e ali também correspondeu ao amor de Leopoldo, sentimento que sempre tivera, mas só agora o entendera.

A esse tempo Horácio foi atrás de Laura, afinal as pantufas que Amélia bordava com a letra “L” para uma amiga só poderiam ser para ela. Foi assim que logo em seguida ele se declarou a ela ajoelhando-se a seus pés e indo beijá-los. Bastou isso para que um fugisse do outro: não era Laura a dona dos lindos pés.

Horácio em seguida acreditou que Amélia devia ser a dona do lindo pé, afinal ele só vira um dos seus pés. O outro poderia ser o mimo que ele sonhava e, se fosse esse o caso, ele não se importaria em reconquistá-la e casar-se com ela. Em uma ocasião, Horácio encontrou-a no centro e quando Amélia percebeu que ele encarava seus pés ela ergueu o vestido mostrando ter lindos pés, os tão sonhados por seu ex-noivo.

Acontece que Laura tinha pés grandes que sempre foram escondidos das pessoas e Amélia sempre teve pés pequenos, mas ambas tinham vergonha dos seus pés. Um dia Amélia quis compará-los, o que envergonhou muito a Laura e dali em diante ela quis se redimir com a prima e amiga. Ela encontrou um sapateiro que fazia sapatos como os comprados na Europa. Ele criou para Laura pares de sapatos que escondiam sua deformidade e assim elas sempre iam juntas à Rua da Quitanda e o criado ia buscar os sapatos que eram pagos na hora por ele, pois assim ninguém saberia quem era a dona do molde deforme que dava origem aos sapatos. E a deformidade que Leopoldo tinha visto na verdade foi apenas um engano da luz.

Horácio nessa noite foi até a casa de Amélia a fim de reconquistá-la. Chegando lá encontrou poucas luzes ligadas e subiu em uma árvore para ver o que se passava. Para seu desgosto lá dentro havia um padre, Amélia e Leopoldo ajoelhados, os pais dela, e dois amigos que certamente seriam as testemunhas. Da árvore e pela janela ele viu o casamento dos dois e depois, antes que as janelas se fechassem, ele viu Amélia entregando aquelas pantufas bordadas com um “L”, que agora sabia se referir a Leopoldo, e pedindo que ele lhe calçasse os lindos e mimosos pés.

A Horácio só restou voltar para casa, onde leu a fábula do leão amoroso que foi pisado pela pata da Gazela.

Por Rebeca Cabral